Isto seria uma
parábola. O ressuscitado seria como o jardineiro do jardim do
túmulo. Deste último, ele conhece bem o vazio. Não se assusta
mais, trata do jardim, cuida das áreas circundantes da morte, sem
que por isso pretende aceder a ela. Ele sabe que os mortos não
retornam. Ele trata do aspecto dos arredores da sua ausência. Ele
não cultiva a sua lembrança mas o imemorial da partilha e da
proveniência, uma e outra misturadas. Ele faz com que os arredores
estejam calmos e enredados, desprovidos de desejos prodigiosos e da
reanimação de sobras, exemptos do odor deletério mas também de
incensos inebriantes. A ressurreição não é uma reanimação: ela
é o prolongamento infinito da morte que desloca e desinstala todos
os valores da presença e da ausência, do animado e do inanimado, da
alma e do corpo. A ressurreição é a extensão de um corpo à
medida do mundo e do raiar de todos os corpos.
Os
cuidados do jardineiro não constituem um culto, mas uma cultura. A
cultura em geral – toda a cultura humana – abre a relação à
morte, a relação aberta pela morte sem a qual não haveria relação,
mas somente uma aderência universal, uma coerência e uma
coalescência, uma coagulação de tudo (uma putrefacção sempre
vivificante pelas novas germinações). Sem morte não haveria senão
contacto, contiguidade e contágio, propagação cancerosa da vida
que por consequência não seria mais vida – ou não seria senão
vida, não a existência,1
não seria senão uma vida que não seria ao mesmo tempo a anastasis.
A morte abre a relação: quer-se dizer, a partilha da partida. Cada
um vem e parte sem fim, incessantemente. É isso mesmo que se
apresenta como o fim revelado sem fim. Mas essa revelação não
desvela nada e sobretudo uma transfiguração do morto em vivo. (A
«transfiguração» ou a «metamorfose», que é o termo grego, é
um todo outro episódio da lenda, que forma como que uma antecipação
da glória do Cristo morto. Mas, precisamente, esse episódio mostra
que não se trata da questão de se fundar em glória:2
não se pode senão ser, fugitivamente, exposto ao seu brilho.
Fugitivamente: muito exactamente entre a vida e a morte, ou bem entre
o toque e o retraimento.
A
revelação, essa revelação na qual a ressurreição deve ser o
sumo (comble)
e a última palavra, revela que não há nada a mostrar, nada a fazer
surgir do túmulo, nenhuma aparição, nenhuma teofania nem epifania
de uma glória celeste. Nem há de todo última palavra. Não há
mesmo «adeus» nem «cumprimento» entre Jesus e Maria Madalena. E
se o seu par representa um par de amantes místicos, como o querem
tantas tradições e tantos poemas, esses amantes têm prazer um com
o outro na separação.
O corpo glorioso é
à vez aquele que parte e aquele que fala, aquele que fala partindo,
aquele que se apaga, apagando-se tanto melhor na obscuridade do
túmulo que no aspecto ordinário do jardineiro. A sua glória só
irradia para os olhos que sabem ver, e esse olhos vêem ninguém mais
que o jardineiro. Mas esse fala, e diz o nome daquela que chora o
desaparecido. Dizer o nome, é dizer essa mesma que morre e que não
morre. É dizer aquele que parte sem partir (aquele que tantas vezes
permanece gravado sobre o túmulo). O nome parte sem partir pois ele
carrega a revelação do infinitamente finito de cada um. «Maria!»
revela Maria a ela mesma, ele revelando à vez a pertença da voz que
a nomeia e o expedito que o seu nome compromete: que ela parte por
sua vez e que ela anuncia a partida. O nome próprio fala sem falar
porque não significa mas designa – e aquele ou aquela que ele
designa permanece infinitamente no revés de toda a significação.
Cada um ressuscita,
um por um e corpo por corpo, essa é a lição difícil, a
obscuridade do pensamento monoteísta, tal como foi cultivada de
Israel ao Islão passando pelo Evangelho. A ressurreição designa o
singular da existência, e esse singular como o nome, o nome como
aquele do morto, a morte como aquilo que separa a significação do
nome. Ser nomeado, é estar de partida e deixar o sentido depois do
seu bordo o qual não se irá, na verdade, nem mesmo ser abordado.
Não
se irá tocar no sentido, eis a verdade, e é isso que faz o sentido
espantoso (béant)
mas indestrutível de a
vida/a morte, o jardim/o túmulo.3
É preciso somente ter orelhas para escutar o que diz o jardineiro,
os olhos para ver (n') o vazio brilhante do sepulcro, o nariz para
cheirar aquilo que não cheira a nada.
«Não me toques,
não me guardes, não procures nem segurar, nem manter, renuncia a
toda a aderência, não penses nem numa familiaridade nem numa
segurança. Não creias que haja uma confiança, como Tomás queria
uma. Não creias, de nenhum modo. Mas permanece firme nessa
não-crença. Permanece fiel só a isso que fica da minha partida: o
teu nome que eu pronuncio. No teu nome não há nada a tomar nem a te
apropriares, mas há isto, que te é endereçado depois do imemorial
e quase até ao inacabável, do fundo sem fundo sempre prestes a
partir».
***
Dois corpos, um de
glória e o outro de carne, distinguem-se nessa partida e
partilham-se mutuamente. Um é a ascensão do outro, o outro é a
morte de um. Morte e ascensão são a mesma coisa – «a coisa», o
inominável – e não são a mesma coisa porque não há aqui
mesmidade. O que se passa com o corpo, com o mundo em geral, assim
que alguém sai do mundo dos deuses, é uma alteração do mundo. Aí
onde havia um mundo para os deuses, os homens e a natureza, há
doravante uma alteridade que atravessa o mundo de parte a parte, uma
separação infinita do finito – uma separação do finito pelo
infinito. Bem como da carne que a glória separa dela mesma. A
possibilidade da declinação carnal é dada com a possibilidade da
glória. Longe de ser uma moral que sobrevém para reprimir a carne,
é agora a constituição da carne dividindo-se de si mesma que torna
possível a invenção de uma tal moral. Essa divisão – o pecado e
a salvação – não vem de outro lado que do apagamento das
presenças divinas que asseguram a unidade homogénea do mundo.
Segue
igualmente que o «divino», doravante, não tem mais lugar nem no
mundo, nem fora do mundo pois não há mais outro mundo. O que «não
é deste mundo» não está noutro lugar: está no mundo a abertura,
a separação, a partida e a ascensão. Também a «revelação» não
é o surgimento de uma glória celeste: ela consiste, ao contrário,
na partida do corpo ascendido em glória. A revelação está na
ausência, e não é aquele que parte quem revela, está naquela a
quem ele confia o cuidar de ir anunciar a sua partida. Para terminar,
é o corpo carnal que revela o corpo glorioso, e é por isso que os
pintores souberam pintar o corpo sensual de Maria Madalena até na
sua retracção de penitente perto da morte.4
Noli
me tangere
forma a palavra e o instante da relação e da revelação entre os
dois corpos, ou seja, de um só corpo infinitamente alterado e
exposto na sua queda como na sua ascensão.
(Ribera)
Porquê, então, um
corpo? Por que só um corpo pode ser derrubado e ascendido, por que
só um corpo pode tocar e não tocar. Um espírito não pode tal
coisa. Um «puro espírito» dá somente o índice formal e vazio de
uma presença inteiramente fechada sobre si. Um corpo abre essa
presença, ele apresenta-a, ele põem-na fora de si, ele separa-a de
si mesma e pelo feito ele condu-la com outras: assim Maria Madalena
torna-se o verdadeiro corpo do desaparecido.
1
Em itálico no original.
2
Cf. Mt 17, 2 s, e Mc 9, 2 s.
Para a glória, reenvio de novo à nota 18, p. 9.
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