Um outro aspecto da
intriga da visão reside no desdém inicial de Maria Madalena, que
pensa ver o jardineiro. Para que esse desdenhar seja possível,
preciso é que Jesus não seja, ou não imediatamente reconhecido.
Ora, Maria Madalena conhece-o há muito tempo para não o poder
reconhecer. A razão desse desdém deve permanecer indeciso: ou bem
que, na certeza de não mais o ver vivo, ela não dispõe mesmo dessa
«pré-visão» ou desse esquema prévio à imagem que permite ou
impõe a identificação; ou bem que, o próprio Jesus não é
primeiramente reconhecível, sendo belo e bem ele mesmo.1
Como já se assinalou a propósito do encontro de Emaús, outras
cenas da aparição do ressuscitado são marcadas por uma dificuldade
em reconhecê-lo, ver a evocação de uma mudança dos seus traços
(ses
traits).2
Em sentido inverso, o reconhecimento do seu rosto (aspect)
não convence Tomás, na cena que sucede à nossa em João, sem que o
discípulo tenha tocado as chagas do supliciado.
Estas dificuldades
em reconhecer Cristo têm um duplo significado.
De um lado, tudo se
passa com se a sua semelhança a si próprio fosse um momento
suspendido e flutuante. Ele é o mesmo sem ser ele mesmo, ele
alterou-se nele mesmo: não é assim que aparece um morto? Não é
essa alteração à vez insensível e impressionante – o aparecer
daquilo (dele) que propriamente não aparece mais, o aparecer de um
aparecido e desaparecido – que carrega a mais própria e a mais
violenta impressão da morte? O mesmo que não é mais o mesmo, a
dissociação do aspecto e da aparência, a ausência do rosto face a
face, o corpo afundando-se no corpo, deslizando debaixo dele. A
partida inscrita sobre a presença, a presença apresentando a sua
licença (congé).
Ele já partiu, ele não está mais aí onde ele está, ele já não
é como ele é. Ele
está morto,3
ou seja que ele não é aquilo ou aquele que simultaneamente é ou
apresenta. Ele é a sua própria alteração e a sua própria
ausência: ele é propriamente a sua impropriedade.
Do outro lado, o
reconhecimento difícil, incerto, duvidoso acarreta o ganho da fé.
Esta não consiste em reconhecer o conhecido, mas a confiar-se no
desconhecido (e em certos casos tomando-o como um substituto do
conhecido: pois isso, é a crença e não a fé). Desse ponto de
vista, a sucessão de episódios no texto de João é instrutiva. Há
primeiro o discípulo (o próprio João) que «vê e crê» frente ao
túmulo vazio com as ligaduras e o sudário abandonados. Esse aí
compreende sem ver, mas nada está dito do conteúdo da sua fé. É
como se essa fé consistisse na confiança deposta no vazio enquanto
tal, sem considerar o que a morte se tornou. Para além do «noli»
houve o episódio de Tomás: Jesus diz-lhe que ele é abençoado por
ter acreditado, mas não tanto como aqueles que creram sem ver («ver»
e «tocar», nessa cena, são colocados como equivalentes: o toque é
como a confirmação ou como o completar da vista). A fé de Tomás
anuncia-se em termos expressos. Ele diz: «Meu Senhor e meu Deus.»
Entre os dois, Maria
Madalena é aquela cuja vista sem clarividência é voltada (para
tomar uma palavra que o texto faz um uso subtil)4
pela voz de Jesus. Ela não reconheceu de todo no tempo em que se
dirigia a ele enquanto jardineiro, para lhe perguntar se ele sabe
onde está o corpo do Mestre, mas assim que este, no lugar de
responder, pronuncia o seu nome – «Maria!» – ela reconhece-o e
chama-o, em hebreu no texto como João sublinha, pelo nome de
«Rabouni» que marca à vez o seu respeito e a sua familiaridade com
ele. Será, portanto, Maria Madalena como aquela que nem estará na
fé frente ao vazio, nem na adesão trazida pelo achado.
Ela
crê porque escuta. Ela escuta a voz que diz o seu nome. Ela escuta
esse que somente se dirige a ela. Ela escuta essa voz que desmente o
semblante do jardineiro, mas por enquanto ele não diz que a sua
vista muda. Ela responde apenas à voz desse que mantém o mesmo
aspecto.
Os pintores
entenderam bem a questão do «jardineiro» fornecendo a Jesus, o
mais das vezes, os atributos desse ofício: uma pá ou bem uma
enxada, um chapéu de palha. Assim que o seu rosto está na sombra,
como em Dürer, a intenção pode indicar a dificuldade de discernir
os seus traços. Por outro lado, a pá ou o chapéu apenas pertencem
ao pensamento da mulher que julga que é o jardineiro. Esses
atributos são na imagem a representação da crença, ou da ilusão.
Quanto à fé, ela toma precisamente aquilo que nenhuma crença pode
fornecer ou desiludir.
Os atributos do
jardineiro estão raramente ausentes. É o caso de Giotto, Duccio ou
Schongauer, por exemplo. Jesus aparece então exclusivamente como
Cristo, Messias e Salvador. Justaposição das obras que representam
um Cristo portador de insígnias da realeza messiânica e dessas,
mais numerosas, que acampam um jardineiro5
numa força iluminante. Num sentido, é o mesmo Cristo. Noutro
sentido, o Messias enquanto ressuscitado (quer-se dizer, a decepção
do Messias triunfante sobre a terra)6
não é um outro senão o primeiro jardineiro que veio. Não há nada
a mudar no seu semblante, não há nada a mudar na vista de Maria
Madalena, e essa vista não é um erro. Sim, como desenha Dürer, a
pá que escava a terra é contígua ao sol elevando. Sim, Maria vê o
jardineiro, o homem comum que sucede a outro homem comum e morre,
pois o túmulo expõe a ausência insondável.
A fé de Maria dá-se
nessa confiança: aquele que chama não chama outra pessoa senão
ela, e a fidelidade a essa nomeação. «Maria» soa aqui como
«Abraão» soou outrora. «Escute quem tem orelhas» significa antes
de mais: escute quem escuta que isso (ça)
se dirige a ele (a ela). Ou seja, a mais ninguém. «Escuta que te
chamo, e chamo-te que partas para dizer aos outros que parto. Não
escutes mais ninguém: tu, tu só, e a minha partida. Não te dou
nada, nada te revelo, não vês mais que o jardineiro. Vai repetir
isso (cela),
que parti.» E como Abraão, Maria não manifesta a sua fé pelas
constatações, as hipóteses ou os cálculos.7
Ela parte. A resposta da verdade na partida (la
réponse à la vérité en partance),
é partir com ela.
1
Negligencio aqui, para permanecer o mais próximo do texto que
identifica melhor Jesus, a hipótese mais arriscada que sugeri
acima; que se trata unicamente do jardineiro. O que quer que ele
seja, é notável que os pintores souberam bastas vezes ter em conta
a aparência do jardineiro, ao menos por uma pá, que por vezes
discernimos mal num primeiro olhar. Voltarei aqui.
2
Os discípulos de Emaús, Lc 24, 16.
3
Sublinhado do autor (N.T.)
4
Há neste ponto das conquistas interpretações delicadas, porque
segundo as versões (grega ou siríaca), Maria Madalena se volta uma
só vez ou duas.
5
Não se pode mais afirmar que a representação do jardineiro se
acentuaria à medida que se afasta de Giotto, pois encontramo-la
também nas iluminuras ou nas gravuras anteriores. Mas não se
negará contudo que essa representação comporta igualmente um
aspecto pitoresco e anedótico que seduz em muito os pintores mais
distantes da religião. Seria preciso, por outro lado, considerar
todas as misturas que são praticadas: meio jardineiro, meio
Messias, meio vestido (o que deve ser um jardineiro), meio nu (o que
deve ser o corpo saído do seu sudário), e as combinações das
quais esses dados formam a fonte para o desenho e a coloração.
Permanecemos fascinados por essa circunstância que faz com que um
problema teológico – como se deve representar um corpo glorioso?
– forneça e combine tantos pretextos para elaborações
iconográficas.
6
Esse que os discípulos aguardam ainda no último momento antes da
sua partida, e que lhes dirá que não se trata desse triunfo, ou
bem menos como eles imaginam ainda (cf. Ac 1,6-8).
7
Ela não pensa: «Se ele diz o meu nome, é porque…, etc.», muito
menos Abraão supõe: «Se Deus é Deus, ele salvará o meu filho»;
ela e ele vão, lá vão eles, como se costuma dizer… (cf.
nesse sentido a diferença das interpretações de Abraão entre
Paulo e Tiago: em Paulo, a fé de Abraão assemelha-se a uma
estimativa que permite «crer» que Deus será benevolente, em Tiago
a fé encontra-se inteiramente no acto de partir segundo a ordem de
Deus, não numa operação reflexiva). (Eu especifico esta análise
em «O judeo-cristão» Actas do Colóquio «Judeidades, questões
para Derrida» tido em 2000 no Centre communautaire israélite de
Paris, publicados em 2003 na Galilée).
Sem comentários:
Enviar um comentário