terça-feira, 6 de junho de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere (cap. O Jardineiro)

Um outro aspecto da intriga da visão reside no desdém inicial de Maria Madalena, que pensa ver o jardineiro. Para que esse desdenhar seja possível, preciso é que Jesus não seja, ou não imediatamente reconhecido. Ora, Maria Madalena conhece-o há muito tempo para não o poder reconhecer. A razão desse desdém deve permanecer indeciso: ou bem que, na certeza de não mais o ver vivo, ela não dispõe mesmo dessa «pré-visão» ou desse esquema prévio à imagem que permite ou impõe a identificação; ou bem que, o próprio Jesus não é primeiramente reconhecível, sendo belo e bem ele mesmo.1 Como já se assinalou a propósito do encontro de Emaús, outras cenas da aparição do ressuscitado são marcadas por uma dificuldade em reconhecê-lo, ver a evocação de uma mudança dos seus traços (ses traits).2 Em sentido inverso, o reconhecimento do seu rosto (aspect) não convence Tomás, na cena que sucede à nossa em João, sem que o discípulo tenha tocado as chagas do supliciado.

Estas dificuldades em reconhecer Cristo têm um duplo significado.
De um lado, tudo se passa com se a sua semelhança a si próprio fosse um momento suspendido e flutuante. Ele é o mesmo sem ser ele mesmo, ele alterou-se nele mesmo: não é assim que aparece um morto? Não é essa alteração à vez insensível e impressionante – o aparecer daquilo (dele) que propriamente não aparece mais, o aparecer de um aparecido e desaparecido – que carrega a mais própria e a mais violenta impressão da morte? O mesmo que não é mais o mesmo, a dissociação do aspecto e da aparência, a ausência do rosto face a face, o corpo afundando-se no corpo, deslizando debaixo dele. A partida inscrita sobre a presença, a presença apresentando a sua licença (congé). Ele já partiu, ele não está mais aí onde ele está, ele já não é como ele é. Ele está morto,3 ou seja que ele não é aquilo ou aquele que simultaneamente é ou apresenta. Ele é a sua própria alteração e a sua própria ausência: ele é propriamente a sua impropriedade.
Do outro lado, o reconhecimento difícil, incerto, duvidoso acarreta o ganho da fé. Esta não consiste em reconhecer o conhecido, mas a confiar-se no desconhecido (e em certos casos tomando-o como um substituto do conhecido: pois isso, é a crença e não a fé). Desse ponto de vista, a sucessão de episódios no texto de João é instrutiva. Há primeiro o discípulo (o próprio João) que «vê e crê» frente ao túmulo vazio com as ligaduras e o sudário abandonados. Esse aí compreende sem ver, mas nada está dito do conteúdo da sua fé. É como se essa fé consistisse na confiança deposta no vazio enquanto tal, sem considerar o que a morte se tornou. Para além do «noli» houve o episódio de Tomás: Jesus diz-lhe que ele é abençoado por ter acreditado, mas não tanto como aqueles que creram sem ver («ver» e «tocar», nessa cena, são colocados como equivalentes: o toque é como a confirmação ou como o completar da vista). A fé de Tomás anuncia-se em termos expressos. Ele diz: «Meu Senhor e meu Deus.»
Entre os dois, Maria Madalena é aquela cuja vista sem clarividência é voltada (para tomar uma palavra que o texto faz um uso subtil)4 pela voz de Jesus. Ela não reconheceu de todo no tempo em que se dirigia a ele enquanto jardineiro, para lhe perguntar se ele sabe onde está o corpo do Mestre, mas assim que este, no lugar de responder, pronuncia o seu nome – «Maria!» – ela reconhece-o e chama-o, em hebreu no texto como João sublinha, pelo nome de «Rabouni» que marca à vez o seu respeito e a sua familiaridade com ele. Será, portanto, Maria Madalena como aquela que nem estará na fé frente ao vazio, nem na adesão trazida pelo achado. Ela crê porque escuta. Ela escuta a voz que diz o seu nome. Ela escuta esse que somente se dirige a ela. Ela escuta essa voz que desmente o semblante do jardineiro, mas por enquanto ele não diz que a sua vista muda. Ela responde apenas à voz desse que mantém o mesmo aspecto.
Os pintores entenderam bem a questão do «jardineiro» fornecendo a Jesus, o mais das vezes, os atributos desse ofício: uma pá ou bem uma enxada, um chapéu de palha. Assim que o seu rosto está na sombra, como em Dürer, a intenção pode indicar a dificuldade de discernir os seus traços. Por outro lado, a pá ou o chapéu apenas pertencem ao pensamento da mulher que julga que é o jardineiro. Esses atributos são na imagem a representação da crença, ou da ilusão. Quanto à fé, ela toma precisamente aquilo que nenhuma crença pode fornecer ou desiludir.
Os atributos do jardineiro estão raramente ausentes. É o caso de Giotto, Duccio ou Schongauer, por exemplo. Jesus aparece então exclusivamente como Cristo, Messias e Salvador. Justaposição das obras que representam um Cristo portador de insígnias da realeza messiânica e dessas, mais numerosas, que acampam um jardineiro5 numa força iluminante. Num sentido, é o mesmo Cristo. Noutro sentido, o Messias enquanto ressuscitado (quer-se dizer, a decepção do Messias triunfante sobre a terra)6 não é um outro senão o primeiro jardineiro que veio. Não há nada a mudar no seu semblante, não há nada a mudar na vista de Maria Madalena, e essa vista não é um erro. Sim, como desenha Dürer, a pá que escava a terra é contígua ao sol elevando. Sim, Maria vê o jardineiro, o homem comum que sucede a outro homem comum e morre, pois o túmulo expõe a ausência insondável.



A fé de Maria dá-se nessa confiança: aquele que chama não chama outra pessoa senão ela, e a fidelidade a essa nomeação. «Maria» soa aqui como «Abraão» soou outrora. «Escute quem tem orelhas» significa antes de mais: escute quem escuta que isso (ça) se dirige a ele (a ela). Ou seja, a mais ninguém. «Escuta que te chamo, e chamo-te que partas para dizer aos outros que parto. Não escutes mais ninguém: tu, tu só, e a minha partida. Não te dou nada, nada te revelo, não vês mais que o jardineiro. Vai repetir isso (cela), que parti.» E como Abraão, Maria não manifesta a sua fé pelas constatações, as hipóteses ou os cálculos.7 Ela parte. A resposta da verdade na partida (la réponse à la vérité en partance), é partir com ela.

1 Negligencio aqui, para permanecer o mais próximo do texto que identifica melhor Jesus, a hipótese mais arriscada que sugeri acima; que se trata unicamente do jardineiro. O que quer que ele seja, é notável que os pintores souberam bastas vezes ter em conta a aparência do jardineiro, ao menos por uma pá, que por vezes discernimos mal num primeiro olhar. Voltarei aqui.
2 Os discípulos de Emaús, Lc 24, 16.
3 Sublinhado do autor (N.T.)
4 Há neste ponto das conquistas interpretações delicadas, porque segundo as versões (grega ou siríaca), Maria Madalena se volta uma só vez ou duas.
5 Não se pode mais afirmar que a representação do jardineiro se acentuaria à medida que se afasta de Giotto, pois encontramo-la também nas iluminuras ou nas gravuras anteriores. Mas não se negará contudo que essa representação comporta igualmente um aspecto pitoresco e anedótico que seduz em muito os pintores mais distantes da religião. Seria preciso, por outro lado, considerar todas as misturas que são praticadas: meio jardineiro, meio Messias, meio vestido (o que deve ser um jardineiro), meio nu (o que deve ser o corpo saído do seu sudário), e as combinações das quais esses dados formam a fonte para o desenho e a coloração. Permanecemos fascinados por essa circunstância que faz com que um problema teológico – como se deve representar um corpo glorioso? – forneça e combine tantos pretextos para elaborações iconográficas.
6 Esse que os discípulos aguardam ainda no último momento antes da sua partida, e que lhes dirá que não se trata desse triunfo, ou bem menos como eles imaginam ainda (cf. Ac 1,6-8).
7 Ela não pensa: «Se ele diz o meu nome, é porque…, etc.», muito menos Abraão supõe: «Se Deus é Deus, ele salvará o meu filho»; ela e ele vão, lá vão eles, como se costuma dizer… (cf. nesse sentido a diferença das interpretações de Abraão entre Paulo e Tiago: em Paulo, a fé de Abraão assemelha-se a uma estimativa que permite «crer» que Deus será benevolente, em Tiago a fé encontra-se inteiramente no acto de partir segundo a ordem de Deus, não numa operação reflexiva). (Eu especifico esta análise em «O judeo-cristão» Actas do Colóquio «Judeidades, questões para Derrida» tido em 2000 no Centre communautaire israélite de Paris, publicados em 2003 na Galilée).

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