duas linhas brancas riscavam paralelas o pálido
azul do céu de outono de Ghent
do outro lado incapazes de sussurro
da parede contavam-se histórias
antiquíssimas da condenação de todos
os homens e as mulheres
ela dormia ainda mas já o tédio
assentava a sua poalha nessas bocas
presas a discursos que não são seus
afundadas no mole de sofás
a melopeia sonífera do ecrã
ofendidas por abrirmos caminho
por esse buraco negro em que nos queriam deixar
a vogar e partir para a velha cidade do norte
e ser recebidos à medida
de um cinzento engolindo o espaço em torno
dos corpos e o rosto borrifado pelo cuspo de anjos
com mais gratidão e calor que o acolhimento
dos nossos anfitriões
e reencontrarmo-nos
há quanto tempo andávamos por rumos incertos
com os ímanes do coração desnorteando
as bússolas dos sexos bastou
a indelicadeza a falta
de privacidade o cansaço das voltas
no labirinto trazendo-nos como ratos
ao leito e fechados depois no quarto
por não haver comunicação possível entre quem espera
de uma breve estadia a amizade de toda uma vida
e aqueles que se querem no abraço e beijo esperado
fizemos da casa de banho um lupanar
em silêncio o erotismo e a sensualidade gritaram
na língua do desejo já não
corriam paralelas as linhas da terra que nos tecem
e se desfiavam retomavam nessa noite a urdidura
na troca de lançadeiras num mergulho de olho a olho
o pânico do amor apreendido pela certeza
um voto relembrado pelo abismo da carne
e celebrado a todas as luzes de que é feita a noite
retomar o gosto da aventura
como dois estranhos no xadrez da sedução
numa cidade que lhes é estranha e na passagem
do tempo concebem o sentido de comunidade feita
a passo lento nas calçadas e na troca
de ideias que fazem mundo em jardins
e sempre a partida é perdida
indo um e depois o outro
inscrever o seu nome em tábuas
descendo ao longo de rios ou ditas pouco
antes de adormecer do outro lado
da parede essas histórias antiquíssimas
da condenação de todos os homens e mulheres
no sabor dos encontros e desencontros
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